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sexta-feira, 29 de maio de 2009

Carlos Céu e Silva é um psicólogo de Alpiarça que trabalha em Lisboa e lançou recentemente o primeiro romance



Carlos Céu e Silva é um psicólogo de Alpiarça que trabalha em Lisboa e lançou recentemente o primeiro romance “Das minhas consultas tinha material para escrever vários livros”


Carlos Céu e Silva, psicólogo, escritor, nasceu em Alpiarça mas há muitos anos que deixou a vila com os pais. Continua a visitar a terra natal onde tem família mas diz que na grande Lisboa, onde vive e tem consultório, há mais oportunidades para quem quer ser reconhecido na sua actividade. Nesta entrevista, o psicólogo de 48 anos, casado e com dois filhos, fala sobre o que considera a falta de rumo dos jovens. E considera que não basta retirar crianças aos pais quando há casos de mau ambiente familiar.

Porque é que um psicólogo nascido em Alpiarça se instala em Lisboa? A província não é atractiva para este tipo de actividade?

Tem a ver com uma realidade portuguesa dos anos 60 e 70. As pessoas nascem no interior. O país não tinha condições para as pessoas seguirem percursos diferentes. Tem a ver com questões familiares. Os meus pais saíram de Alpiarça cedo. Saí de lá com três anos e meio mas continuo a visitar a terra com alguma frequência até porque tenho lá família. E tenho por Alpiarça um carinho que faço questão de dizer que sou natural de Alpiarça.

Mas viver no Ribatejo é que não?

Em termos práticos hoje em dia não consigo viver sem ser em Lisboa. Tinha dificuldade em viver noutro sítio. Mas Alpiarça, em termos afectivos, mantém-se como a minha terra.
A psicologia tem mais futuro nas grandes cidades.
A questão da saúde mental tem que ser trabalhada tanto no interior como nas grandes cidades. É uma questão de escala. O stress, por exemplo, existe no interior e existe nas cidades.
Mas Lisboa oferece mais oportunidades para um psicólogo…
Não é uma questão de mercado. Há é mais oportunidades de uma pessoa se afirmar profissionalmente.
Pode-se ser muito bom psicólogo numa terra pequena onde nunca lhe vão dar o valor devido?
Sim. Mas também há um estigma. Na psicologia lidamos com a intimidade. Com a privacidade das pessoas. Ser o psicólogo da terra, ser de Alpiarça, viver lá, ter lá consultório, conhecer as famílias torna-se complicado trabalhar. Aqui não conheço as famílias dos meus clientes.

As pessoas da sua terra não o procuram?

Pontualmente. Não é uma grande procura. A generalidade das pessoas não sabe que sou de Alpiarça.

Onde se sente mais tranquilo?

Sinto-me bem em cidades mas não gosto dos engarrafamentos e para os evitar começo a trabalhar às oito da manhã. Mas também gosto muito do campo, da tranquilidade. Procuro muito essa tranquilidade e silêncio para fazer a quebra do trabalho, porque passo o tempo a ouvir as pessoas.

O que se aprende com as pessoas do campo?

Já não há as pessoas do campo no sentido literal. As pessoas estão tão contaminadas pela televisão, pelo consumo… Mas quando chego a Alpiarça o que sinto é uma estranha pacatez. As pessoas são calmas, têm um ritmo diferente.

Como acompanha a situação política da sua terra?

Como acontece em muitas outras terras, há um distanciamento muito grande entre os responsáveis políticos e o cidadão. Há uma preocupação em fazer crescer a terra e entende-se que esse crescimento é só feito com construção de prédios e de estradas. Mas falta iniciativas que juntem as pessoas em termos culturais e desportivos.

Já foi convidado para participar em iniciativas em Alpiarça?

Não! Às vezes os políticos e responsáveis políticos deviam ser mais sensíveis a estas questões culturais. Sei que fechou a livraria de Alpiarça e é imperdoável que não se faça qualquer coisa. Se há falta de leitores é porque as entidades não promovem a leitura e não ajudam a iniciativa de privados.

A vila tem sabido merecer o legado de José Relvas?

Sim, mas era preciso mais. Divulgar por exemplo a ligação de José Relvas à arte e à cultura. Alpiarça só ganhava em aproveitar este nome para fomentar iniciativas culturais a nível nacional.

Partilha os valores ribatejanos, as tradições?

Não! Por exemplo: não gasto dinheiro para ir a uma tourada. Agora se me oferecerem um bilhete já vou. Em termos éticos não acho que seja um espectáculo saudável. Em termos de raízes há uma base histórica e antropológica que justifica uma ligação ao toiro, à terra, aos cavalos. A forma como se tratam os animais é que foge aos meus ideais como cidadão.

Lançou recentemente o seu primeiro romance, “As mulheres de Henry James”, que no fundo é um pouco a visão do psicólogo sobre a obra deste autor. O que é que o conduziu a esta aventura?

Uma necessidade. Ouço tantas histórias, tanta vida, que preciso de escrever. Optei pela ficção por respeito aos meus pacientes. Das minhas consultas tinha material para vários livros, com histórias tanto pelo lado macabro como bonito. Mas não toco nessas questões.

E porque é que vai buscar as mulheres presentes nos livros de Henry James?

Li muito a obra dele. Tenho esta mania de comprar tudo sobre um autor quando gosto dele. Ele tinha um ar aristocrático que assumia e defendia. Isso é de enaltecer. Ele tinha uma forma diferente de olhar para as mulheres, no século XIX, e admiro isso.
Descreve o Henry James como um homem emocionalmente poupado, também é o seu caso?
Na nossa personalidade, quando estamos a lidar com os outros, devemos ser transparentes. Mas essa transparência não deve ser tão forte ao ponto de esmagar o outro.
A sociedade ainda hoje não está preparada para homens sensíveis…
Não! Temos a ideia que a sociedade está muito evoluída mentalmente, mas não está assim tanto. Os nossos sinais emocionais são os mesmos de há dez mil anos. Nós é que achamos porque temos a informática, máquinas fotográficas fantásticas, temos vários instrumentos, achamos que ultrapassámos uma série de limitações ou características. As nossas emoções básicas continuam cá todas, por mais Hugo Boss que as pessoas vistam, ou mais viagens que se façam à Austrália.
“A dor de perder um filho é das mais violentas”

É coordenador técnico da associação “A Nossa Âncora – Apoio a pais em luto”. Como surgiu esta ligação?

Porque lido muito com essas questões, como o suicídio que começa a ser menos um tabu, e com a morte. E como técnico verifico que há uma falta de preparação da sociedade, da escola, dos políticos para estas questões.

O que é que faz para mudar essa realidade?

Trabalhamos muito as questões da morte com os jovens, fazemos encontros e iniciativas nas escolas. Às vezes há situações relacionadas com o suicídio em escolas e os professores não sabem como lidar com isso e convidam-nos para irmos falar sobre o assunto.
Deve ser uma área difícil de trabalhar…
Há uma dificuldade em trabalhar com pais que perdem um filho. Todas as mortes em princípio são violentas, mas a dor de perder um filho é das mais violentas.

Como técnico, como vê as relações entre pais e filhos actualmente?

Tudo se alterou nos últimos 20 anos. Por exemplo, no caso da professora que usou linguagem de cariz sexual, os pais terão incentivado os filhos a gravarem a conversa na sala. Como técnico não acho saudável estimularem-se os jovens a serem delatores.
Os pais obrigam os filhos a fazerem a chantagem…
Estimulam. Por exemplo, não deve ser permitido que as crianças andem a filmar os outros. Senão daqui a uns anos deixa de haver privacidade. Cria-se uma cultura de que se não gosto de alguém vou tramá-lo.

Os jovens que colocam na internet imagens de colegas, nem sempre as mais abonatórias, é sinal de uma crise de valores?

Chegamos a um ponto em que deixa de haver valores. Hoje há acesso a muita informação de forma gratuita e facilitada, através da internet, mas depois muitos dos pais não estão disponíveis para explicar o que é bom e mau. Como as informações adquiridas não são trabalhadas, todas têm para a criança ou jovem o mesmo valor. Tanto o crime que viram na televisão como a fome no Darfur ou a entrega de um prémio a alguém…
Anda uma grande confusão, um turbilhão de ideias, dentro da cabeça dos jovens…
Não há uma distinção de emoções. Estes jovens que vão crescendo têm que perceber o que é privado, o que é íntimo e o que é público. Hoje em dia está a haver uma promiscuidade nas formas diferentes de dialogar e conviver, não se está a perceber o que é o lugar de um e o lugar do outro. E depois crescem com o sentimento de que temos direito a tudo, a fazer tudo.

Neste contexto há também uma relativização do conceito de morte?

Tudo é relativo hoje em dia. A sociedade actual é a do belo e da ilusão que se é jovem sempre. A televisão, em algumas séries, cria o culto do eterno jovem, bonito, mas se corrermos atrás do mito, da utopia, no início estamos felizes e rendidos ao encanto, depois vamos dar trabalho ao psicólogo e às vezes ao psiquiatra.

Então como caracteriza a juventude actual?

Mais informada, mais interessante, mais motivada em certos aspectos. Os jovens de hoje ganharam uma autonomia e um desenvolvimento que é muito produtivo. Em contrapartida é uma juventude que não encontra rumo, não encontra futuro, não tem noção da continuidade na vida e está num impasse e mais desamparada.

Porque é que se diz que “anda tudo maluco”?

Não estamos malucos no sentido esquizofrénico, mas sim no sentido social porque nos afastamos do real. Nós somos animais que temos que ter contacto com a natureza, temos que andar no verde, pisar poças de água, temos que suar… Mas cada vez mais temos uma sociedade em que andamos todos muito bem vestidinhos com roupas de marca. Estamos a entrar no exagero e afastamo-nos cada vez mais do ambiente natural. O nosso lado mais instintivo está a ser abafado. E quando isso acontece cria estas doenças e esta dor interna.

Estamos a tornar-nos seres mecânicos?

Sim! Não é normal estarmos dentro de um carro duas horas num engarrafamento. Não é normal comermos de pé em dez minutos. Não é normal estarmos cada vez mais distanciados do que é o ser humano. Por exemplo, eu subo no elevador com outras pessoas e ninguém diz bom dia.
Técnicos passam muito tempo em gabinetes e pouco com as crianças

As crianças têm actualmente os seus direitos e a sua saúde mental garantidos?

É evidente que não. As crianças agora andam a tomar medicação por causa da hiperactividade. E para mim isso é um mito. São poucas as crianças que são hiperactivas, as outras são é reguilas, o que é saudável. Criou-se nos adultos um conceito de conforto e bem-estar e a criança tem que ser como um boneco ou comportar-se como um adulto. Antes subíamos às árvores, andávamos de bicicleta na rua. Hoje as crianças não fazem isso mas têm a mesma energia lá dentro, então dá-se o comprimido para as reprimir.

E o Estado, as instituições, a sociedade garantem o bem-estar das crianças?

Não são eleitoralistas as questões da saúde mental, porque nesta área só se vêem resultados 20 anos depois. Nessa altura o governante já está reformado da política. O Estado investe pouco nesta área, tal como investe pouco na cultura que também não tem um resultado imediato. Somos todos responsáveis pelos políticos que temos.
Há crianças que passam anos em instituições. Isso não é saudável…
As instituições deviam existir apenas para as acolher provisoriamente e deviam ser entregues a famílias que as quisessem adoptar o mais rápido possível. Mas os processos são muito demorados. Quem vai adoptar sente-se esmagado por tanta entrevista, apesar destas terem que se realizar.

Tem sido seguida um prática de retirar crianças aos pais e colocá-las em instituições. Concorda?

Há muita miséria. Há ambientes familiares muito maus. Mas às vezes quem toma estas decisões nem sempre tem preparação ética para avaliar determinadas situações. Tem que haver bom senso e o meu bom senso é sempre diferente do dos outros.
Criou-se a ideia de que se um filho chega à escola sujo, porque se calhar andou a brincar, é porque é maltratado pelos pais e lá vêm as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens com um processo…
Concordo. Mas às vezes também entra muita criança muito bem vestida e bonitinha mas no corpo há sinais de violência física. Há muitos técnicos que passam muito tempo em reuniões internas, dentro dos gabinetes, e muito pouco tempo com as crianças. Os técnicos nem sempre estão preparados em termos humanos para olharem para a pessoa frágil ou fragilizada de uma forma diferente e desistem do seu papel activo que deviam ter como técnicos.

Não é preferível acompanhar as famílias desestruturadas, como lhes chamam, em vez de lhes retirarem os filhos?

Era útil envolver os pais, por exemplo, em situações de psicoterapia e não apenas trabalhar com as crianças.

Mas porque se retiram as crianças aos pais?

Porque é mais fácil (para o Estado). E depois, como os pais não são trabalhados psicologicamente, os fenómenos voltam a ser repetidos.
«O Mirante»

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