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sábado, 26 de junho de 2010

Diplomacia, protocolo, funções de representação e omissão: ainda o episódio Cavaco Silva e José Saramago


Artigo de Opinião
Por: Anabela Melão

É público que Cavaco Silva e o escritor nunca nutriram simpatia um pelo outro. Enquanto Primeiro Ministro, Cavaco Silva sorteou-nos com os piores Secretários de Estado da Cultura de que há memória desde a implantação da Democracia. O mais perto que lhe conhecemos de uma apreciação poética foi o seu ar extasiado perante umas mal ensaiadas poesias da autoria de sua esposa, D. Maria. Vai daí que se sabe mesmo que uma das razões que levaram o escritor a abandonar o País foi o veto de Sousa Lara que cortou o romance de José Saramago Evangelho segundo Jesus Cristo da lista dos concorrentes ao Prémio Literário Europeu, na qualidade – já se vê - de Subsecretário de Estado da Cultura. Lá foi dizendo Sousa Lara que foi "Porque não representa Portugal", que tal “atitude nada tem a ver com estratégias de venda, nem sequer com opções literárias. E muito menos com as escolhas políticas de Saramago. Não entrou em linha de conta o facto de ele ser comunista ou pertencer à Frente Nacional para a Defesa da Cultura" (Afirmações de Sousa Lara ao Público, 25 de Abril de 1992), e que "A obra atacou princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses. Longe de os unir, dividiu-os." (Sousa Lara aquando do debate sobre a Cultura na Assembleia da República, Abril de 1992).
Porque terá sido então que a celeuma se instalou pela ausência notada de Cavaco Silva? Dizem alguns que este tinha o direito de fazer o que bem entendesse, que em Democracia não há imposições, que escrever uma carta de condolências era o bastante. Claro que se Cavaco Silva comparecesse ao funeral, muitos o acusariam de cinismo e hipocrisia, donde não viria mal ao mundo porque essas se presumem e se aceitam como qualidades inatas e fundamentais aos políticos. É mau, é triste, mas uma infeliz constatação. Portanto, Cavaco aguentaria estoicamente esta acusação, até porque não é a primeira vez que é acusado de tal inqualidade ao vivo e a cores. Manteria, sem dúvida, a sua dignidade, e, mais ainda, manteria intocável a instituição que representa. Tenho de discordar desta história dos direitos em Democracia irem tão longe que permitem uma omissão deste tipo a um Presidente da República – que curiosamente tem sido acusado de meter o bedelho em tudo e mais alguma coisa não estivesse já em plena campanha eleitoral – e para mim, dos ensinamentos da minha passagem por alguns gabinetes ministeriais – alguns chefiados por pessoas ocasionalmente bem escolhidas pelo então Primeiro Ministro Cavaco Silva – e pela Assembleia da República – idem, não esqueço o significado de palavras como protocolo e diplomacia. Ou seja, noblesse oblige! Quem assume cargos públicos desta índole perde o direito a ter posições próprias perante casos como este. Goste ou não goste, a sua posição exigir-lhe-ía tacto político, no mínimo, como Presidente da República Portuguesa.
Se Cavaco não foi ao funeral porque não era amigo ou conhecido do escritor e se não suporta a ideia de prestar homenagem a alguém que o enfrentou, será aceitável como homem, mas inaceitável como Presidente. Cavaco foi ao absurdo, porque não compreendeu que as funções de representação de um Presidente não servem os amigos, subordinam-se à honra de um país. O Presidente Cavaco Silva apequenou-se perante o homem Anibal. É um paradoxo! Para quem não perde uma oportunidade para revelar o sentido humano esta foi uma ocasião imperdível e de efeitos irreversíveis.
Um Presidente da República que falta à última homenagem ao único prémio Nobel da Literatura de língua portuguesa, a um dos mais importantes escritores do século XX, ao que, a par de Pessoa, ofereceu a Portugal picos do notoriedade internacional, e se limita a decretar dois dias de luto nacional, faltando à cerimónia oficial, não percebeu a essência da portugalidade.
É neste sentido que Cavaco Silva tem vindo a ser conotado com um homem de contas e não como um homem de letras. Curiosamente, é um homem de letras que lhe faz frente nas eleições que se avizinham. Cavaco nutrirá por Manuel Alegre o mesmíssimo respeito que mostrou ter por Saramago. É-lhe, por certo muito difícil aceitar que quem não domine matérias económicas possa aspirar à Presidência. Provavelmente, não terá relevado alguma coisa do que fez como Ministro das Finanças. Que estes, sim, servem para isto: fazer contas. A um Presidente exige-se um pouco mais: que saiba compreender a alma portuguesa, a incontenção dos escritores, a rebeldia dos filósofos e a aparente insensatez dos livres pensadores.
O triste é experimentar este tirocínio. A que exéquias Cavaco Silva se sentirá obrigado a fazer representar Portugal? Melhor dizendo, quantos e que tipo de portugueses lhe merecem essa homenagem? Saramago não o obrigou a essa capitulação. “Deixai que os mortos enterrem os mortos” que vêm aí as eleições e há muito trabalho de casa para preparar e seria impensável e inadequado interrompê-lo só porque morreu um tipo de que até nem gostava nada (era recíproco!). Passe bem os olhos por alguns dos homens que condecorou com uma das suas mãos e que a outra lho perdoe!
Mas do incidente não falará a História até porque Cavaco tem sempre razão e nunca se engana, mas experimente ter um dia como livros de mesa de cabeceira – se Deus se interessasse por política a reforma permitir-lhe-ía longas noites de leitura - o “Memorial do Convento”, o “Levantados do Chão”, o “Ano da Morte de Ricardo Reis” ou a “História do Cerco de Lisboa”, e, dá-me a ideia, de que, só então, Cavaco assumirá a humildade para pedir perdão ao homem a que recusou a homenagem devida. Mais a homenagem de uma VIDA!

4 comentários:

Anónimo disse...

Que eu saiba, o funeral de Saramago, não foi considerado "Funeral de Estado". Logo nada obriga o PR a estar presente para prestar as honrasd nacionais, que por acaso esteve representado.
Respeito e ideia de Anabela mas não estou de acordo com ela, porque fazem do caso, um caso politico

Anónimo disse...

Quanto à polémica gerada em volta do Presidente da República ter ou não ido ao funeral de José Saramago, não me parece ser assunto de grande monta. José Saramago, estou certo, nem teria ligado qualquer importância ao facto.

Este ESCRITOR, como pensador inteligente e culto que deixou uma obra-prima e intemporal para o mundo, estará muito acima de todos estes "faits divers" em que o querem meter.
O “NOBEL” que reconheceu o seu trabalho confirma isso mesmo, apesar das vozes contrárias que se levantaram.

Foi um homem sério, leal e fiel aos seus princípios. Cumpriu o seu dever. Que descanse em paz.

Obrigado Saramago.

M. Dacosta

Anónimo disse...

SARAMAGO não teve "funeral de Estado" nem tinha que ter mas que ele e a sua obra é patrimonio de Portugal "de Estado" lá isso ninguem pode ignorar, logo o mais alto representante do País devia estar presente,ainda que como disse a Anabela tivesse que se aguentar se lhe chamassem de hipócrita, porque relmente o teria sido, não podemos esquecer o que aconteceu durante o mandato de 1º Ministro Professor Cavaco.
Mas na minha opinião pessoal não fez falta nenhuma, SARAMAGO dispensá-lo-ia de certamente.

Aproveito para aplaudir a decisão que foi tomada no que diz respeito aos restos mortais de SARAMAGO, fico feliz de podefr passar por lá de vez enquando, Obrigada à familia e ao Sr. Presidente da C.M.de Lisboa, António Costa.

Anónimo disse...

Quem foi que disse que os blogues alpiarcenses ("blogues do nojo" de acordo com uma acta camarária do tempo de Rosa do Céu) só tinham administradores, leitores e colaboradores rudes e sem cultura para dizer mal e botar abaixo?
O resultado está à vista! Basta analisar os posts e respectivos comentários.
O mesmo não se poderá dizer dos discursos suaves e truculentos do "Trevo do Mar" de então.

Um leitor