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terça-feira, 30 de abril de 2013

Livro - Um retrato dos arroteadores que desbravaram a Lezíria no século XX

Nas décadas de 40 a 60 do século XX, em pleno Estado Novo, famílias inteiras desbravaram as terras dos vales do Ribatejo e contribuíram, com o seu trabalho, «para consolidar a identidade das comunidades ribeirinhas do Tejo». Homens e mulheres, que ficaram conhecidos como arroteadores, são os protagonistas de uma obra publicada sob a forma de Caderno Cultural, da autoria de Ricardo Hipólito.

«Os arroteadores do Vale da Lama da Atela e d’outro vais - a saga da terra e do pão». Assim se intitula a obra que mostra aos leitor «a saga de homens e mulheres que vieram de vários pontos do país, sobretudo do norte alentejano e do norte do Ribatejo, para cultivarem terrenos até então abandonados», começa por explicar o autor, lembrando que alguns não eram proprietários nas suas regiões de origem, apesar de outros o serem. 

Ricardo Hipólito refere que, de Alpiarça, houve também vários agricultores (pequenos agricultores ou «fazendeiros», como eram chamados) que «fizeram a terra», ou seja, que tornaram aqueles terrenos em solos aráveis.
Uma terra que era depois cultivada principalmente com cereais, como o trigo, o milho (de sequeiro), a aveia e a cevada.

Estes arroteamentos aconteceram em pleno Estado Novo nas décadas de 40 a 60 do século XX (apesar de o fenómeno já ter acontecido também nos finais do século XIX), «num momento em que se aproveitavam terrenos (fossem eles ou não próprios para a agricultura) de modo a que Portugal fosse auto-suficiente em cereais».

«Foi uma autêntica campanha militar. Foi a Campanha do Trigo, decretada em 1929 pelo ministro da Agricultura, coronel Linhares de Lima. Tinha, inclusive, o lema “O trigo da nossa terra é a fonteira que melhor nos defende”», recorda o autor.

Na obra, apresentada publicamente a 28 de Abril nas instalações da antiga escola primária do Casalinho (Alpiarça), e onde ainda hoje vivem famílias de descendentes dos primitivos arroteadores, foram feitas várias entrevistas por Ricardo Hipólito a filhos de arroteadores, a outros que o foram ou que trabalharam para estes homens.

A maior parte deles estão hoje na casa dos 70/80 anos. «Os que viveram aquilo foram pessoas que sofreram bastante. Para colocarem aqueles terrenos cobertos de mato, com solos muito difíceis (muitos eram pedregosos), a produzir, exigia um esforço (quase) titânico quer para os homens, quer para as bestas (visto a motorização ser inexistente, excepto a partir de determinada época, na debulha dos cereais)», conta.

Também as condições de vida nos campos naquelas décadas da primeira metade do século XX «eram muito más. E para aquelas pessoas que, quando chegavam às herdades para onde iam arrotear terras, tinham que construir as suas habitações ainda pior. Tendo em conta que os proprietários das terras - os lavradores - cediam temporariamente a posse de parcelas de terreno, não os autorizavam que aquelas habitações tivessem características definitivas», acrescenta Ricardo Hipólito.

Também as condições de habitabilidade «eram más ou péssimas, a alimentação precária e os níveis de analfabetismo, escandalosos».

De resto, vinca, «o principal lavrador daqueles vales nunca implementaram o ensino, ou construíram qualquer escola. Mas uma capela não faltou, exercendo mesmo represálias a quem faltasse à missa dominical», como descreve um dos entrevistados no livro.

Mudança na paisagem:Com estas migrações também a paisagem ribatejana se modificou. «Num primeiro momento verificou-se o surgimento de inúmeros casais naquelas charnecas, o estímulo do pequeno comércio, a transformação de solos abandonados e/ou cobertos de matos em terrenos agricultados».

Depois, «como grande parte das áreas cultivadas nunca o deveria ter sido, porque eram terrenos nada próprios para a cultura de cereais, houve um aumento acentuado da erosão dos solos. Como eram solos pobres, pouco tempo passado os arroteadores iam-nos deixando porque a rentabilidade era baixa. E com o fim das arroteias (particularmente com a expulsão dos arroteadores, para que não ganhassem a posse da terra, tendo em conta o número de anos que já as cultivavam), o mato cedo as tornou a cobrir. E muitas voltaram a novo abandono».

Ricardo Hipólito explica que perante este cenário também os tais núcleos populacionais eram votados ao abandono, sendo que hoje, em muitos sítios, nem ruínas já se avistam.

«Muitos já não voltaram para as suas terras de origem. Partiram para outros locais das redondezas. Fundaram, por exemplo, o Casalinho, no concelho de Alpiarça. Construíram casas em locais que, nessa altura, eram distantes da vila (hoje com a expansão da malha urbana, já a ela estão ligados). “Engrossaram” outras povoações já então existentes, como são os da Parreira e de Salvador (ambas no concelho da Chamusca)», adianta.

A obra, defende Ricardo Hipólito, «pretende perpetuar no tempo um fenómeno com relevante importância na migração de populações ocorrido na primeira metade do século passado na charneca ribatejana».

Por outro lado, realça, «foi minha intenção prestar uma homenagem a essas centenas de homens, mulheres e crianças que, na sua maioria, partiam do quase nada para alcançar um pouco mais».

«Estimular a auto-estima das populações»:«Depois, em termos culturais, num meio como o de Alpiarça, em que as iniciativas editoriais não são abundantes, pega-se na História e nas estórias das pessoas “simples” para traçar o percurso de vida da comunidade. Para além dos registos que ficarão, acho que se estimula a auto-estima da população ou de sectores da população que, muitas vezes, nem eles dão relevo ao que fizeram (ou sofreram)», prossegue o autor da obra.

Por fim, Ricardo Hipólito afirma que o fenómeno das arroteias e o papel da fixação de populações em zonas com pouca densidade populacional, particularmente no Alentejo, charneca ribatejana e em parte da península de Setúbal, «teve um grande impacto no mundo rural daqueles tempos».

Passado um pouco mais de meio século, Ricardo Hipólito está convencido que este tema é «praticamente desconhecido da generalidade da população portuguesa».

Para isso, também «contribuiu o terrível abandono que os campos portugueses sofreram desde a década de 80 do século XX». E garante: «abandonou-se o campo e deixou de se “passar cartão” às gentes que ainda lá viviam (e/ou que lá trabalhavam)».

«Os arroteadores do Vale da Lama da Atela e d’outro vais - a saga da terra e do pão» é o segundo volume dos «Cadernos Culturais», um projecto da Associação Independente para o Desenvolvimento Integrado de Alpiarça (AIDIA) e conta com o apoio da Câmara Municipal de Alpiarça.

De referir que «Manuel António, a arte de criar um melão» é o nome do primeiro Caderno Cultural de Ricardo Hipólito. O autor nasceu em Alpiarça em 1957 tendo-se licenciado no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa. Actualmente é funcionário da Secretaria de Estado da Cultura e assume-se como um apaixonado pela história e cultura do seu concelho e há alguns anos que tem recolhido diversas memórias no concelho de Alpiarça. 
Ana Clara | terça-feira, 30 de Abril de 2013

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