.

.

.

.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O País que temos ou o Governo que merecemos?

João Tordo

Carta ao pai (*)


Ontem (dia 18), o meu pai foi-se embora. Não vem e já volta; emigrou para o Recife e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos. A sua reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante os últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os concertos que foi dando pelo país. Nesses concertos teve salas cheias, meio-cheias e, por vezes, quase vazias; fê-lo sempre (era o seu trabalho) com um sorriso nos lábios e boa disposição, ganhando à bilheteira. Ontem, quando me deitei, senti-me triste. E, ao mesmo tempo, senti-me feliz. Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e não os pais (mas talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de conseguir baralhar essa tendência). Feliz, porque admiro-lhe a coragem de começar outra vez num país que quase desconhece (e onde quase o desconhecem), partindo animado pelas coisas novas que irá encontrar. Tudo isto são coisas pessoais que não interessam a ninguém, excepto à família do senhor Tordo. Acontece que o meu pai, quer se goste ou não da música que fez, foi uma figura conhecida desde muito novo e, portanto, a sua partida, que ele se limitou a anunciar no Facebook, onde mantinha contacto regular com os amigos e admiradores, acabou por se tornar mediática. E é essa a razão pela qual escrevo: porque, quase sem o querer, li alguns dos comentários à sua partida. Muita gente se despediu com palavras de encorajamento. Outros, contudo, mandaram-no para Cuba. Ou para a Coreia do Norte. Ou disseram que já devia ter emigrado há muito. Que só faz falta quem cá está. Chamam-lhe palavrões dos duros. Associam-no à política, de que se dissociou activamente há décadas (enquanto lá esteve contribuiu, à sua modesta maneira, com outros músicos, escritores, cineastas e artistas, para a libertação de um povo). E perguntaram o que iria fazer: limpar WC's e cozinhas? Usufruir da reforma dourada? Agarrar um "tacho" proporcionado pelos "amiguinhos"? Houve até um que, com ironia insuspeita, lhe pediu que "deixasse cá a reforma". Os duzentos e tal euros. Eu entendo o desamor. Sempre o entendi; é natural, ainda mais natural quando vivemos como vivemos e onde vivemos e com as dificuldades por que passamos. O que eu não entendo é o ódio. O meu pai, que é uma pessoa cheia de defeitos como todos nós - e como todos os autores destes singelos insultos -, fez aquilo que lhe restava fazer. Quer se queira, quer não, ele faz parte da história da música em Portugal. Sozinho, ou com Ary dos Santos, ou para algumas das vozes mais apreciadas do público de hoje - Carminho, Carlos do Carmo, Marisa, são incontáveis - fez alguns dos temas que irão perdurar enquanto nos for permitido ouvir música. Pouco importa quem é o homem; isso fica reservado para a intimidade de quem o conhece. Eu conheço-o: é um tipo simpático e cheio de humor, que está bem com a vida e que, ontem, partiu com uma mala às costas e uma guitarra na mão, aos 65 anos, cansado deste país onde, mais cedo do que tarde, aqueles que o mandam para Cuba, a Coreia do Norte ou limpar WC's e cozinhas encontrarão, finalmente, a terra prometida: um lugar onde nada restará senão os reality shows da televisão, as telenovelas e a vergonha. Os nossos governantes têm-se preparado para anunciar, contentíssimos, que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o que acabou com ela. A primeira coisa foi a cultura, que é o património de um país. A segunda foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na rua todos os dias. A terceira foi a esperança. E a quarta foi o meu pai, e outros como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar cabo deste país - do país que ele, e milhões de pessoas como ele, cheias de defeitos, quiseram construir: um país melhor para os filhos e para os netos. Fracassaram nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que podíamos mudar. Não queremos mudar. Queremos esta miséria, admitimo-la, deixamos passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do conforto dos seus sofás, quem, por não ter trabalho aqui - e precisar de trabalhar para, aos 65 anos, não se transformar num fantasma ou num pedinte - pegou nas malas e numa guitarra e se foi embora. Ontem, ao deitar-me, imaginei-o dentro do avião, sozinho, a sonhar com o futuro; bem-disposto, com um sorriso nos lábios. Eu vou ter muitas saudades dele, mas sou suspeito. Dói-me saber que, ontem, o meu pai se foi embora.
(*) Leitor amigo fez-nos chegar esta 'carta' que também pode ser lida na fonte
Com este conteúdo resta-nos saber se  é este o país que temos ou o Governo que merecemos

5 comentários:

o Rodrigues da clandestinidade disse...

Afinal a juventude não morreu, ainda tem sentimentos.
Não todos é certo, que a maioria não está nesta qualidade.
Na rua onde vivo há 36 casas de famílias e contando-as as pessoas individualmente são 4 com menos de dez anos duas com menos de 20 anos onze com menos de 60 anos, 9 com menos de oitenta e 6 com mais de oitenta e um com mais de noventa.
Passo dias e dias que não vejo nenhuma destas pessoas e é uma rua movimentada.
Eu estou com 75 anos, acreditem se quiserem passo em média mais de oito horas por dia a escrever memórias, cultivo uma hora por dia o meu quintal,e converso aqui no Alpiarcense com vocês também de vez enquanto, por exemplo quando aparece um comentário como o deste jovem em honra do seu pai.Quantos de vocês já o fizeram?

Anónimo disse...

Mas não é só o governo o culpado desta situação! São também os partidos políticos com assento na Assembleia da Republica, como também as Câmaras Municipais...!

Anónimo disse...

os artistas sao como os jogadores de futebol (alguns) quando estao no auge, nao lembram do futuro, depois dá nestas coisas. pior sao os trabalhadores anónimos que trabalham uma vida inteira e tem uma reforma de miséria, e sem outros recursos.

Anónimo disse...

nao tem reformas de 200 e poucos euros

Anónimo disse...

Tanto quanto sei a reforma é dada em função dos descontos que se fez durante a vida. Isto para as pessoas como o Fernando Tordo, que é uma pessoa estimàvel, grande cantor, ninguém contesta. Mas porque carga de água havia de ter uma reforma maior se não contribuiu para isso? Estou um bocado farto de ver actores, cantores e outros artistas a queixarem-se das suas reformas miseràveis, argumentando que isso significa que o Estado não se preocupa com a Cultura. De facto, não se preocupa, mas o que tem uma coisa a ver com a outra? Então esses senhores deviam passar a vida a ganhar dinheiro, e alguns bastante dinheiro, não descontar nada , ou muito pouco para a Segurança Social e depois só porque são artistas serem previligiados em relação aos outros Trabalhadores? Isto para não falar dos anos em que esses artistas passaram a fazer espectáculos por esse país fora, recebendo o cachet em dinheiro vivo para fugir aos impostos.