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sexta-feira, 21 de março de 2014

Conto de Primavera

Por: Isabel Faria


O Sr. Zé foi a primeira pessoa que conheci quando vim viver para Lisboa. Ainda estávamos a descarregar as mobílias quando um homem, sem idade, se aproximou e nos perguntou se precisávamos de ajuda. Olhou-nos fixamente (a mim e ao meu filho) e disse, numa voz pausada e doce ”A Sra. e o menino fazem-me tanto lembrar a minha filha e o meu neto…”.
Os anos foram passando. Regularmente, fomo-nos encontrando. Sempre que nos víamos, me perguntava pelo menino. Algumas vezes dizia: “O menino está tão grande. Deve estar quase do tamanho do meu neto".
Por altura do Natal, havia sempre um dia, normalmente ao fim-de-semana, em que nos tocava à porta, para nos desejar Bom Natal.
No primeiro ano, perguntei-lhe se ia passar o Natal com a família, respondeu-me que nunca ia, porque viviam muito longe.
Há uns anos, veio-me bater à porta muito mais cedo, logo num dos feriados do início de Dezembro.
Perguntei-lhe: “Tão cedo, vizinho?” “É que sabe, este ano, finalmente, vou passar o Natal com a minha filha e o meu neto”.
Despediu-se, como sempre, com o habitual “Dê um beijinho ao menino, vocês fazem-me tanto lembrar os meus…".
Não o voltei a ver desde esse dia.
Um ou dois meses depois, quando voltava do trabalho, encontrei a vizinha da casa ao lado da dele. Não resisti a perguntar-lhe o que era feito do Sr. Zé, que nunca mais nos tínhamos cruzado.
Olhou-me e perguntou “Então a vizinha, não sabe? Ele morreu nas vésperas do Natal...".
“Morreu? Nas vésperas de Natal, logo este ano que ia passar o Natal com a filha e o neto?!”.
Voltou a olhar-me com um olhar espantado e disse: “Deve estar a fazer confusão, menina, o Sr. Zé vivia sozinho. A filha morreu atropelada uns anos antes de vocês virem viver para aqui. Tinha acabado de casar e estava grávida…”. “A filha morreu? Então e o bebé?”, perguntei.
“Estava grávida de muito pouco tempo, morreram os dois…. Se calhar está a fazer confusão com outra pessoa qualquer, menina..."
“Tem razão, D. Regina, devo estar mesmo a fazer confusão...bom dia!”
Enquanto subia as escadas lembrei-me das suas palavras, quando o meu filho foi para a Escola Primária. “Se o meu neto vivesse comigo, eles podiam ir juntos...sempre faziam companhia um ao outro. Tenho tanto medo que ele ande por aí sozinho..."
Entendi naquele dia que o seu menino nunca mais teria medo de andar por aí sozinho…e que os Natais passariam sempre a ser passados em família.
Todos os anos, nesta altura, nascem umas flores pequeninas no muro do quintal da casa onde vivia o Sr. Zé. Este ano tem chovido muito, entretanto fizeram as obras da Faculdade em frente da casa dele e da minha, houve muito pó, a casa está abandonada e quase em ruínas e eu receei que…atá agora, quando espreitei a rua. 
Talvez porque é o primeiro dia de Primavera lá está a primeira flor. Pequenina, ainda quase em botão…mas viva. Tão viva que se vê a olho nu, da minha janela, mesmo com a noite já pegada.
São dias de festa.


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