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domingo, 18 de janeiro de 2015

II Cruzeiro Religioso do Tejo – 1ª Etapa: Entre Alvega e o Rossio ao Sul do Tejo, à descoberta do desconhecido

Por: Lurdes Véstia 



O dia despontou bonito, o Sol deixou ver-se depois de uma véspera de muita chuva, o que prometia um bom ambiente para uma primeira etapa que era prevista como um ensaio-geral do que poderia suceder em todo o percurso.
Nunca tinha tido oportunidade de ir conhecer o Tejo acima de Abrantes. Trabalhei em Mação, há mais de 30 anos, mas o que conheci por lá teve mais a ver com o caminho-de-ferro e a estrada de regresso a Santarém, tal era a minha vontade de por ali não ficar muito tempo… as pessoas eram calorosas mas a minha irreverência e juventude queriam mais do que Mação tinha para me oferecer na época.
O meu companheiro de viagem é o Zé Gaspar, e o nosso papel é o de organizar toda a logística de terra. Transportamos comida, água, mochilas dos peregrinos e tantas outras coisas que se tornam necessárias para a boa prossecução dos objetivos do Cruzeiro.
Chegados a Alvega pelas 9 e 30 minutos do dia 17 de Maio de 2014, tínhamos como incumbência ornamentar o andor que iria transportar rio abaixo a Imagem de Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo.
Lá chegados, começaram as dificuldades, porque não conseguimos encontrar ninguém que nos pudesse orientar. O que se estaria a passar? Pensámos que melhor seria ter levado GPS… depois de muito procurar lá encontrámos o nosso espaço, no embarcadouro de Alvega, e foi entre muitos risos e boa disposição que “carregámos” o andor com cravos amarelos, coroas imperiais e muito feto-real.
Ainda fomos a tempo de hastear o pendão em honra de Nª Srª, na margem direita do Tejo, no sítio de receção aos barcos típicos dos pescadores que participavam na primeira etapa.
A espera pelo cortejo fluvial foi-se fazendo entre conversas e o contar de estórias do antigamente. “Dantes era muito complicado sair daqui [Alvega]. Tínhamos de chegar aqui ao embarcadoiro e gritar ou assobiar ao barqueiro que morava do outro lado para nos atravessar. E nã havia cabo, era a poder de braços e de vara... Quantas vezes a barca ia água abaixo arrastada pela força da corrente. E nã pense que isto foi há muito tempo… há praí uns 50 anos ainda era como lhe conto... Ah pois era!”
Nesta espera também houve tempo para conversar com o Renato, que escreve para o blogue da União de Freguesias de Alvega e Concavada. Aproveitámos para explicar que foi para reforçar o sentido de cultura e de pertença que a Imagem de Nª Srª foi criada pelo Projeto da Cultura Avieira. Foi parida por nós!, disse, o que gerou alguns risos descontraídos.
Entretanto, mais acima, a primeira etapa já se iniciara, a partir de Casa Branca, um pouco a montante de Alvega, com os homens a lutar contra a falta de caudal e contra o amontoado de rochas que enchem o leito do Tejo naquele troço. Decidiu-se iniciar o II Cruzeiro a partir de um porto mais acima de Alvega porque aqui não existem condições para colocar os barcos na água. A própria Imagem consagrada de Nª Srª só viria a ser colocada na embarcação-guia já em Alvega, em condições de segurança, porque se receava que a passagem pelas rochas pudesse danificá-la.
Só viemos a saber depois que, enquanto aguardávamos, os peregrinos foram obrigados a sair dos seus barcos para ultrapassar os obstáculos que as enormes pedras colocaram no seu caminho, num troço muito difícil. A passagem fez-se aí à força de braços, com os peregrinos no leito quase seco do rio a empurrar os seus barcos sobre um tapete improvisado de tábuas, que serviu de passadeira sobre as rochas, com o precioso auxílio dos Bombeiros de Abrantes.
Foram instantes de esforço e de tensão, como mais tarde nos confessaram, por causa do receio de os barcos de madeira poderem ficar danificados e de o Cruzeiro acabar logo ali, sem sequer se iniciar…Graças a um grande trabalho de entreajuda, felizmente tudo correu bem, os obstáculos foram ultrapassados, os peregrinos e os barcos nada sofreram, e o Cruzeiro retomou o seu rumo até à primeira paragem em Alvega. Aqui em Alvega a população ia-se chegando ao embarcadouro… para a descoberta de uma “santa desconhecida”. Mantinham os olhos no rio com a expectativa de ver chegar as bateiras e os homens que as conduziam.
O Zé Gaspar ia-me dizendo “vá lá vender uma pagelas, temos de fazer algum dinheiro para pagar o Cruzeiro!”. Parece simples dito assim… Enfrentei o desafio e entre umas graças e uns sorrisos lá fui pedindo a uns e a outras que dessem qualquer coisinha em troca de uma pagela de Nª Srª.
Quase sem darmos por isso as embarcações tinham chegado ao cais de Alvega, no mesmo local onde já colocáramos a bandeira de sinalização do fim daquele troço da primeira etapa. Foi uma boa surpresa, porque não sabíamos quando iriam chegar, nem em que condições chegariam, devido às enormes dificuldades do percurso até aí. Eram cinco barcos típicos, que nós conhecemos como bateiras na zona do “Tejo da Lezíria” mas que em Alvega, na parte norte do Tejo, com outras tradições, são apenas conhecidas como barcos. Foi emocionante ver chegar a bom-porto todos os peregrinos e as suas embarcações, especialmente aquela que vinha a abrir o cortejo, e que a partir daí passou a transportar a Imagem da Santa.
Lá chegaram sãos e salvos e ali ficaram por momentos para recuperar da fadiga do esforço físico e anímico que os obstáculos do rio lhes colocaram. Não pude deixar de sentir a emoção do momento. O II Cruzeiro afinal apenas estava a iniciar o seu longo caminho, simbolizado naquela primeira paragem em Alvega.
Senti a satisfação pelo reencontro com as caras daqueles que tão bem conhecia e que ali estavam a chegar, com expressões inesquecíveis estampadas nos rostos, como a querer dizer “conseguimos ultrapassar tudo e aqui estamos junto de vós”.
Assim o senti, à medida que iam saindo das bateiras e pisavam terra firme, não só para descansar como também para recuperar as forças. Depois de um almoço frugal, como compete a quem anda em peregrinação, fez-se uma oração não só para pedir a graça divina, como para garantir uma boa descida do rio a todos os participantes.
Para aqueles que afirmam que o Tejo não tem vida ribeirinha ou até alma própria, aqui estavam indícios que podiam provar o contrário.




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